quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Ψ O Desassossego de Fernando Pessoa

*Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros ...
Mathias Stomer
*(...) Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar,
 tanto vale amar ao pequeno tinteiro como à grande indiferença das estrelas.

*Acordei hoje muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me logo da cama, sob o estrangulamento de um tédio incompreensível.

*Nenhum sonho o havia causado; nenhuma realidade o poderia ter feito.


*Era um tédio absoluto e completo, mas fundado em qualquer coisa.

*No fundo obscuro da minha alma, invisíveis forças desconhecidas travavam uma batalha em que meu ser era o solo, e todo eu tremia do embate incógnito.

*Uma náusea física da vida inteira nasceu com o meu despertar.


*Um horror a ter que viver ergueu-se comigo da cama.

*Tudo me pareceu oco e tive a impressão fria de que não há solução para problema algum.


*Uma inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos mínimos.

*Tive receio de endoidecer. O meu corpo era um grito latente.

*O meu coração batia como se falasse.

*Com passos largos e falsos percorri, descalço, o comprimento pequeno do quarto, e a diagonal vazia do quarto interior, que tem a porta ao canto para o corredor da casa.


*(...)  Recebi o anúncio da manhã, a pouca luz fria que dá um vago azul branco ao horizonte que se revela, como um beijo de gratidão das coisas.

*Porque essa luz, esse verdadeiro dia, libertava-me, libertava-me não sei de quê, dava-me o braço à velhice incógnita, fazia festas à infância postiça, amparava o repouso mendigo da minha sensibilidade transbordada.


*Ah, que manhã é esta, que me desperta para a estupidez da vida, e para a grande ternura dela!

*Quase que choro, vendo clarear-se diante de mim, debaixo de mim, a velha rua estreita, ...  o meu coração tem um alívio de conto de fadas reais, e começa a conhecer a segurança de não sentir.

*(...) Viver parece-me um erro metafísico da matéria, um descuido da inércia.


*Nem olho o dia, para ver o que ele tem que me distraia de mim, ...  e ignoro com as costas dobradas se é sol ou falta de sol o que está lá fora na rua subjetivamente triste, na rua deserta onde está passando o som de gente.

*Ignoro tudo e dói-me o peito. Parei de trabalhar e não quero mexer-me daqui.

*Estou olhando para o mata-borrão branco sujo, ... Uns desenhos de nada, feitos pela minha desatenção.

*Olho a tudo isto como um aldeão de mata-borrões, com uma atenção de quem olha novidades, com todo o cérebro inerte por detrás dos centros cerebrais que promovem a visão.

*Tenho mais sono íntimo do que cabe em mim.

*E não quero nada, não prefiro nada, não há nada a que fugir.

*Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida.

*Façamos da nossa falência uma vitória, uma coisa positiva e erguida, com colunas, majestade e aquiescência espiritual.

*Se a vida [não] nos deu mais do que uma cela de reclusão, façamos por ornamentá-la, ainda que  com as sombras de nossos sonhos, desenhos a cores mistas esculpindo o nosso esquecimento sobre a parada exterioridade dos muros.


*Como todo o sonhador, senti sempre que o meu mister era criar.

*Como nunca soube fazer um esforço ou ativar uma intenção, criar coincidiu-me sempre com sonhar, querer ou desejar ...


*Às vezes, sem que o espere ou deva esperá-lo, a sufocação do vulgar me toma a garganta e tenho a náusea física da voz e do gesto do chamado semelhante.

*A náusea física direta, sentida diretamente no estômago e na cabeça, maravilha estúpida da sensibilidade desperta...

*Cada indivíduo que me fala, cada cara cujos olhos me fitam, afeta-me como um insulto.

*Extravaso horror de tudo. Entonteço de senti-los.

*E acontece, quase sempre, nestes momentos de desolação estomacal, que há um homem, uma mulher, uma criança até, que se ergue diante de mim como um representante real da banalidade que me agoniza.

*Não representante por uma emoção minha, subjetiva e pensada, mas por uma verdade objetiva, realmente conforme de fora com o que sinto de dentro que surge por magia analógica e me traz o exemplo para a regra que penso.

*Há dias em que cada pessoa que encontro, e, ainda mais, as pessoas habituais do meu convívio forçado e quotidiano, assumem aspectos de símbolos, isolados ou unidos formam uma escrita poética ou oculta, descritiva em sombras da minha vida.

*O escritório torna-se uma página com palavras de gente; a rua é um livro; 


*Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente distingo o que essas vidraças súbitas, reveladas na superfície das coisas, admitem do interior que velam e revelam.

*Entendo sem conhecimento, como um cego a quem falem de cores.

*Passando às vezes na rua, ouço trechos de conversas íntimas.

*( ... ) Levo comigo, só de ouvir estas sombras de discurso humano que é afinal o tudo em que se ocupam a maioria das vidas conscientes, um tédio de nojo, uma angústia de exílio


*Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes.

*A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira.

*Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que ouvesse recebido uma fortuna, 


*a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.

*Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!

*Certas horas que tenho vivido, horas perante a Natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas.

*Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas as minhas direções desejadas.

*Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações.

*Não gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de desânimo.

*Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais;


*mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá, onde floriam as rosas, nunca deixava de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá atenuado na minha sonolência de viver.

*Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. 

*(...) Os teus colares de pérolas falsas amaram comigo as minhas melhores horas.

*Eram cravos as flores preferidas, talvez porque não significavam requintes.

*Os teus lábios festejavam sobriamente a ironia do seu próprio sorriso. Compreendias bem o teu destino?

*Era por o conheceres sem que o compreendesses que o mistério escrito na tristeza dos teus olhos sombreara tanto os teus lábios desistidos.

*A nossa Pátria estava demasiado longe para rosas. Nas cascatas dos nossos jardins a água era transparente de silêncios. 


*Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura. 

*Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos, quer porque eles me faltassem, quer porque a amizade que eu concebera fora um erro dos meus sonhos.

*Vivi sempre isolado, e cada vez mais isolado, quanto mais dei por mim.

*Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. 


*Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazemo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida.

*Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver.

*Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.


 O Livro do Desassossego - Fernando Pessoa  
Ψ  Fatima Vieira - Psicóloga Clínica

2 comentários:

Guaraciaba Perides disse...

Um texto essencial...a sua leitura nos reporta a muitos sensações de estranhamento que nos ocorre e nos leva a outros pensamentos mais antigos de interpretação da realidade.
Um abraço e obrigada pela postagem.
um abraço

psique disse...

Olá Guaraciaba Perides,
Agradeço sua visita e solicito permissão para usar um poema seu numa futura postagem sobre o amor incondicional: "O Amor que não se Basta" http://guaraciabaperides.blogspot.com.br