domingo, 19 de fevereiro de 2012

a casa abriga um dia sonhado... Bachelard


"A casa é uma das maiores forças de integração para as lembranças e os sonhos do homem".
- (...) sem ela, o homem seria um ser disperso.

 Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida.
 É corpo e é alma. Antes de ser "jogado no mundo", o homem é colocado no berço da casa.
 A casa é vista, como o grande berço, o aconchego, desde o nascimento do homem; é o paraíso material.
- As lembranças da casa estão guardadas na memória, no inconsciente e acompanha-nos durante toda a vida e, sempre voltamo-nos a elas nos nossos devaneios.
- "Viver num andar é viver bloqueado. Uma casa sem sótão é uma casa onde se sublima mal; uma casa sem porão é uma morada sem arquétipos".
- "A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico".
..."a casa remodela o homem", adquirindo qualidades e valores humanos.
Baudelaire: "O Inverno não aumenta a poesia da habitação?

(... ) Se for "impossível escrever a história do inconsciente humano sem escrever uma história da casa", então a casa da grande cidade perdeu a riqueza dos arquétipos do seu inconsciente e os seus habitantes tornaram-se seres mutilados e seres exilados na terra, portanto, apátridas.
- O ninho, para os pássaros, é a síntese da morada da vida, pois acaba sendo, para os filhotes, sua penugem externa, a morada quente. Quantas imagens um simples ninho suscita: o ninho-casa, o ninho-abrigo, o ninho-segurança, o ninho-conforto, o ninho-alegria, o ninho-mundo.
- Por outro lado, a concha é uma casa que cresce e se constrói na mesma medida que seu morador.
- Um pequeno caracol mole fabrica sua casa de pedra, compondo uma imagem sublime que faz o espírito contemplar a maravilha da casa-concha habitada, dessa concha-ninho que provoca devaneios que instigam a imaginação humana, que conferem à concha um devaneio de intimidade, “uma morada natural” .
... A simples imagem da porta conduz tantos devaneios, instaura tantos desejos de vê-la aberta, de abrir o ser, de conquistar estes dois planos: o fechado e o aberto e o seu inte
rmediário – o entreaberto.
... A casa é educativa, a casa educa, a casa paterna é o berço da educação. Isto significa que a casa, além de dispensar interiormente calor, comodidade, repouso, tranquilidade, afecto, serenidade e acolhimento, dá ao homem na sua relação com o mundo exterior firmeza de carácter e força para prevalecer contra o mundo: A casa "é um instrumento para afrontar o cosmos. (...) A casa ajuda-nos a dizer: serei um habitante do mundo, a despeito do mundo".
... Entre os andares existem as escadas: "A escada que conduz ao porão tem um carácter diferente da escada que leva ao sótão".
... Descer ao porão, onde a casa mergulha as suas raízes na terra negra e úmida, significa mergulhar na noite e no frio que moram debaixo da casa e, em princípio, só os homens vão à adega buscar o vinho.
- Subir ao sótão é ascender para a mais tranquila solidão. O sótão é o lugar onde ocorreram as birras de infância, a contemplação, as leituras intermináveis, o disfarce com as roupas dos nossos avós e a descoberta de imensas velharias que se ligam para sempre à alma da criança: os devaneios do sótão tornam vivos o passado familiar e a juventude dos nossos ancestrais.
- Para Bachelard, o sótão é o que faz a casa estar enraizada no solo profundo, de resto inquietante e terrível, da terra e das rochas.
- O porão é a sua raiz e representa o inconsciente, enquanto o seu telhado é o ninho e representa as funções conscientes: "A casa oniricamente completa é um dos esquemas verticais da psicologia humana".
- Em Rilke: As lutas "endurecem" a velha casa. A tempestade brame e retorce as árvores; Rilke, abrigado na casa, gostaria de estar do lado de fora, não por necessidade de aproveitar o vento e a chuva, mas para uma pesquisa do devaneio.
Henri Bosco: "Quando o abrigo é seguro, a tempestade é boa".
- a casa de Malicroix se chama La Redousse. Está construída numa ilha da Camarga, não longe de um rio que murmura. É simples. Parece frágil. ... "Nada sugere como o silêncio o sentimento dos espaços ilimitados. Entrei nesses espaços. Os barulhos emprestam colorido à extensão e lhe dão uma espécie de corpo sonoro. Quando, entretanto, a ausência deles a abandona em toda a sua pureza, a sensação do vasto, do profundo, do ilimitado toma conta de nós no silêncio. Ela me invadiu e eu fui, durante alguns minutos, confundido com essa grandeza da paz noturna. A casa lutava bravamente.
... Então outros ventos vieram e, tudo se vergou sob o choque impetuoso; mas a casa, flexível, tendo-se curvado, resistiu à fera. Sem dúvida ela se prendia ao solo da ilha por raízes inquebrantáveis, e por isso suas finas paredes de pau-a-pique e madeira tinham uma força sobrenatural. Por mais que atacassem as janelas e as portas, pronunciassem ameaças colossais ou trombeteassem na chaminé, o ser agora humano em que eu abrigava meu corpo nada cedeu à tempestade. Senti seu cheiro descer maternalmente até o meu coração. Naquela noite ela foi realmente minha mãe".

- Georges Spyridaki: "Minha casa é diáfana, mas não é de vidro. Teria antes a constituição do vapor. Suas paredes condensam-se e se expandem segundo o meu desejo, ... às vezes, deixo as paredes de minha casa se expandirem no espaço que lhes é próprio, que é a extensibilidade infinita".  Porque a casa que eu não tenho, eu a quero cercada de muros altos, e quero as paredes bem grossas e quero muitas paredes, e dentro da casa muitas portas com trincos e trancas; e um quarto bem escuro para esconder meus segredos e outro para esconder minha solidão.
- Pode haver uma janela alta de onde eu veja o céu e o mar, mas deve haver um canto bem sossegado em que eu possa ficar sozinho, pensando minhas coisas, um canto sossegado onde um dia eu possa morrer; ... casa é o lugar de andar nu de corpo e alma, e para falar sozinho.
Machado de Assis: A casa estava perto; à medida que ia vendo as outras casas e chácaras próximas, Mariana sentia-se restituída de si mesma. Chegou finalmente; entrou no jardim, respirou. Era aquele o seu mundo; menos um vaso, que o jardineiro trocara de lugar: - João, bota esse vaso onde estava antes, disse ela. - Tudo estava em ordem, a sala de entrada, a de visitas, a de jantar, os seus quartos, tudo. Mariana sentou-se primeiro, em diferentes lugares, olhando bem para todas as coisas, tão quietas e ordenadas. Depois de de uma manhã inteira de perturbação e variedade, a monotonia trazia-lhe um grande bem, e nunca lhe pareceu tão deliciosa.
Guimarães Rosa: Ia-me sentando eu na cadeira-de-balanço, escura – já se sabe, mas insista-se nisto, todos os móveis ali sendo confortavelmente escuros – de palhinha no assento e no encosto, era talvez de madeira avermelhada; e não me sentei. Súbito lembrara-me o que mais de uma vez ouvido, de que, lá, no mesmo lugar, quase num extremo da sala, outrora tinham sido duas, iguais, dialogavelmente emparelhadas, as cadeiras-de-balanço: a do Vovô Barão e a de Vovó Olegária... Desde tantos anos, porém, depois de que houve o que houve, uma delas desaparecera. Estaria na outra metade da casa? Aqui, esta sala-de-fora, mesma, por longa que se fingisse ainda de ser – e guardava, de modo estranho, uma sugestão do tamanho primitivo, de seus quinze ou dezesseis metros – fora um dia cortada ao meio. A gente corria com os olhos a parede, forrada de papel com riscas verticais alternadas, em grade sutil, estriaturas de azul e branco, vez em vez um dourado friso mais fino: mas, no lado oposto ao da cadeira-de-balanço, fechava-se, em pé, só a superfície crua, de cal, irremediável. Ali, era uma separação imposta, adventícia, o vedamento ininterrupto, a todo longo, e que partia em duas a habitação – desde o jardim fronteiro e até ao remoto fundo dos quintais.
- Louis Guillaume: Maison de Vent (Casa de Vento), "Muito tempo te construí, ó casa!
Em cada lembrança eu transportava pedras Do riacho para o alto de tuas paredes ... casa de vento, morada que um sopro apagava".
- Paul Claudel: os apartamentos são "buracos convencionais", destituídos de verticalidade em si mesma e sem espaço ao seu redor. A altura dos edifícios da cidade é apenas exterior, os seus elevadores destroem os "heroísmos da escada", o andar é uma simples horizontalidade e, por isso, "já não há mérito em morar perto do céu".
Max Picard: as casas já não estão na natureza, não conhecem os "dramas do universo", as suas relações com o espaço tornaram-se "artificiais" e as ruas são meros tubos onde os homens são aspirados. Na cidade, "a casa não tem raízes" e "os arranha-céus não têm porão". Falta às casas da cidade a raiz.
- Goethe: referiu-se, no seu "Fausto", ao fugitivo, ao "sem-abrigo", ao "sem lar", ao homem desnaturalizado "sem meta nem repouso".
- Heidegger, refere os sem-abrigo que vagueiam pelas nossas cidades foram destituídos do estatuto de humanidade e, por isso, já não são "homens", os quais na linguagem capitalista significam "contribuintes" nomeados nas suas inúmeras estatísticas metabolicamente gordas e inumanas, completamente reificadas.
Isto significa que o homem só pode ser verdadeiramente homem quando tem um lar, uma casa. Se o homem se sentir bem e confortável no calor do seu "ninho", ele será invadido pela "felicidade do habitar", acompanhada pelo sentimento completamente elementar de se sentir semelhante ao animal.
- Vlaminck: «O bem-estar que sinto diante do fogo, quando o mau tempo se desencadeia, é totalmente animal. O rato no seu buraco, o coelho na toca, a vaca no estábulo, devem ser felizes como eu».
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. In: Os Pensadores XXXVIII. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1974. - in: "A Poética do Espaço", trad. de Antonio de Pádua Donesi)
 (Fatima Vieira - Psicóloga Clínica)

































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