domingo, 19 de setembro de 2010

foi culpa das rosas...

A IMITAÇÃO DA ROSA
- Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela própria já no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto ele se vestia, e então sairiam com calma, de braço dado como antigamente. Há quanto tempo não faziam isso?
... e depois jantariam com Carlota e João, recostados na cadeira com intimidade.
Há quanto tempo não via Ar­mando enfim se recostar com intimidade e conversar com um homem? A paz de um homem era, esquecido de sua mulher, conversar com outro homem sobre o que saía nos jornais.
... enquanto isso ela falaria com Carlota sobre coisas de mulheres, submissa à bondade autoritária e prática de Carlota, recebendo enfim de novo a desatenção e o vago desprezo da amiga, a sua rudeza natural.
E ela mesma, enfim, voltando à insignificância com reconhecimento. Como um gato que passou a noite fora e, como se nada tivesse acontecido, encontrasse sem uma palavra um pires de leite esperando...
- Interrompendo a arrumação da penteadeira, Laura olhou-se ao espelho: é ela mesma, há quanto tempo? Seu rosto tinha uma graça doméstica, os cabelos eram presos com grampos atrás das orelhas grandes e pálidas. Os olhos marrons, os cabelos marrons, a pele morena e suave, tudo dava a seu rosto já não muito moço um ar modesto de mulher. Por acaso alguém veria, naquela mínima ponta de surpresa que havia no fundo de seus olhos, nesse mínimo ponto ofendido a falta dos filhos que ela nunca tivera?
... planejava arrumar a casa antes que a empregada saísse de folga para que, uma vez Maria na rua, ela não precisasse fazer mais nada, senão 1º) calma­mente vestir-se; 2º) esperar Armando já pronta; 3º) o ter­ceiro o que era? Pois é. Era isso mesmo o que faria;

... Quando lhe haviam dado para ler a "Imitação de Cristo", com um ardor de burra ela lera sem entender mas, que Deus a perdoasse, ela sentira que quem imitasse Cristo estaria perdido — perdido na luz, mas perigosamente perdido. Cristo era a pior tentação. E Carlota nem ao menos quisera ler, mentira para a freira dizendo que tinha lido. Pois é.
... Sentou-se no sofá como se fosse uma visita na sua pró­pria casa que, tão recentemente recuperada, arrumada e fria, lembrava a tranqüilidade de uma casa alheia. O que era tão satisfatório: ao contrário de Carlota, que fizera de seu lar algo parecido com ela própria, Laura tinha tal prazer em fazer de sua casa uma coisa impessoal; de certo modo per­feita por ser impessoal.
Oh como era bom estar de volta, realmente de volta, sorriu ela satisfeita. Segurando o copo quase vazio, fechou os olhos com um suspiro de cansaço bom. - Passara a ferro as camisas de Armando, fizera listas metódicas para o dia seguinte, não parara na verdade um instante sequer.
Se uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse e soubesse que as pessoas da Terra se cansavam e envelheciam, teria pena e espanto. Sem entender jamais o que havia de bom em ser gente, em sentir-se cansada, em diariamente falir; só os iniciados compreenderiam essa nuance de vício e esse refinamento de vida.
... O marido cansado e perplexo, o que dava a ela uma piedade pun­gente, sim, mesmo dentro de sua perfeição acordada, a pie­dade e o amor, ela super-humana e tranqüila no seu isola­mento brilhante, e ele, quando tímido, vinha visitá-la levan­do maçãs e uvas que a enfermeira com um levantar de ombros comia...
ele fazendo visita de cerimônia como um namorado, com o hálito infeliz e um sorriso fixo, esforçan­do-se no seu heroísmo por compreender, ele que a recebera de um pai e de um padre, e que não sabia o que fazer com essa moça da Tijuca que inesperadamente, como um barco tranqüilo se empluma nas águas, se tornara
super-humana, não tinha tempo de dormir agora, nem sequer de tirar um cochilo pensou vaidosa e com falsa modéstia, era uma pessoa tão ocupada! sempre invejara as pessoas que diziam "não tive tempo"...
... iam jantar com Carlota e tudo tinha que estar ordeiramente pronto, era o pri­meiro jantar fora desde que voltara e ela não queria chegar atrasada, tinha que estar pronta quando... bem, eu já disse isso mil vezes, pensou encabulada. Bastaria dizer uma só vez: "não queria chegar atrasada" ... O que devia fazer era 1º) esperar que a empregada estivesse pronta; 2º) dar-lhe o dinheiro para ela já trazer a carne de manhã; 3º) começar minuciosamente a se lavar e a se vestir, entregando-se sem reserva ao prazer de fazer o tempo render. .. ela iria de braço dado com Armando, andando devagar para o ponto do ônibus, com aquelas coxas baixas e grossas que a cinta empacotava numa só fazendo dela uma "senhora dis­tinta"; mas quando, sem jeito, ela dizia a Armando que isso vinha de insuficiência ovariana, ele, que se sentia lisonjeado com as coxas de sua mulher, respondia com muita audá­cia: "De que me adiantava casar com uma bailarina?", era isso o que ele respondia. Ninguém diria, mas Armando po­dia ser às vezes muito malicioso, ninguém diria. Àsvezes ele era muito sem-vergonha, ninguém diria.
Car­lota ficaria espantada se soubesse que eles também tinham vida íntima e coisas a não contar, mas ela não contaria, era uma pena não poder contar, Carlota na certa pensava que ela era apenas ordeira e comum e um pouco chata, e se ela era obrigada a tomar cuidado para não importunar os outros com detalhes, com Armando ela às vezes relaxava e era cha­tinha, o que não tinha importância porque ele fingia que ouvia mas não ouvia tudo o que ela lhe contava, o que não a magoava, ela compreendia perfeitamente bem que suas conversas cansavam um pouquinho uma pessoa...
- O devaneio enchia-a com o mesmo gosto que tinha em arrumar gavetas, chegava a desarrumá-las para poder arrumá-las de novo.
- Abriu os olhos, e como se fosse a sala que tivesse tira­do um cochilo e não ela, a sala parecia renovada e repousada com suas poltronas escovadas ... Oh como era bom rever tudo arrumado e sem poeira, tudo limpo pelas suas próprias mãos destras, e tão silencioso, e com um jarro de flores, como uma sala de espera. Como era rica a vida comum, ela que enfim voltara da extravagância. Até um jarro de flores. Olhou-o.
- Ah como são lindas, exclamou seu coração de repen­te um pouco infantil. Eram miúdas rosas silvestres que ela comprara de manhã na feira, em parte porque o homem insistira tanto, em parte por ousadia.
Mas à luz desta sala as rosas estavam em toda a sua completa e tranqüila beleza. Nunca vi rosas tão bonitas, pensou com curiosidade... Olhou-as com atenção. Mas a atenção não podia se manter muito tempo como simples atenção, transformava-se logo em suave prazer, e ela não conseguia mais analisar as rosas, era obri­gada a interromper-se com a mesma exclamação de curio­sidade submissa: como são lindas...
Eram algumas rosas perfeitas na sua miudez, não de todo desabrochadas, e o tom rosa era quase branco. Parecem até artificiais!
- Mas, sem saber por quê, estava um pouco constrangida, um pouco perturbada. nada demais, apenas acontecia que a beleza extrema incomodava.
- Então Laura teve uma idéia de certo modo muito original: por que não pedir a Maria para passar por Carlota e deixar-lhe as rosas de presente? E também porque aquela beleza extrema incomodava. Era um risco.
Maria daria as rosas a Carlota. - D. Laura mandou, diria Maria.
... Essas coisas não são necessárias entre nós, Laura! diria a outra com aquela franqueza um pouco bruta, e Laura diria num abafado grito de arrebatamento:
- Oh não! não! não é por causa do convite para jantar! é que as rosas eram tão lindas que tive o impulso de dar a você!
... E Carlota se surpreen­deria com a delicadeza de sentimentos de Laura, ninguém imaginaria que Laura tivesse também suas ideiazinhas...
- E dar as rosas era quase tão bonito como as próprias rosas.
E mesmo ela ficaria livre delas... E ela teria esquecido as rosas e a sua beleza.
- Não, pensou de súbito vagamente avisada. Era preciso tomar cuidado com o olhar de espanto dos outros. Era pre­ciso nunca mais dar motivo para espanto, ainda mais com tudo ainda tão recente, nunca mais essa coisa horrível de todos olharem-na mudos, e ela em frente a todos...
- Maria, disse então ao ouvir de novo os passos da em­pregada. E quando esta se aproximou, disse-lhe temerária e desafiadora: você poderia passar pela casa de D. Carlota e deixar estas rosas para ela? Você diz assim: "D. Carlota, D. Laura mandou". Você diz assim: "D. Carlota..."- Sei, sei, disse a empregada paciente.
Queria fazer um ramo bem artístico. E ao mesmo tempo se livraria delas...
- E quando olhou-as, viu as rosas.
- E então, incoercível, suave, ela insinuou em si mesma: não dê as rosas, elas são lindas. Um segundo depois, muito suave ainda, o pensamen­to ficou levemente mais intenso, quase tentador: não dê, elas são suas. Laura espantou-se um pouco: porque as coisas nunca eram dela...
E mesmo podia ficar com elas pois já passara aquele primeiro desconforto que fizera com que vagamente ela tivesse evitado olhar demais as rosas. Por que dá-las, então? Não iam durar muito, por que então dá-las enquanto estavam vivas? O prazer de tê-las não significava grande risco...
E mesmo argumentou numa última e vitoriosa rejeição de culpa — não fora de modo algum ela quem quisera com­prar, o vendedor insistira muito e ela se tornava sempre tão tímida quando a constrangiam, não fora ela quem quisera comprar, ela não tinha culpa nenhuma. Olhou-as com en­levo, pensativa, profunda.
E, sinceramente, nunca vi na minha vida coisa mais perfeita.
Bem, mas agora ela já falara com Maria e não teria jeito de voltar atrás... Se quisesse, não seria tarde demais... Poderia dizer : "ô Maria, resolvi que eu mesma levo as rosas quando for jantar!" Não as levaria... E Maria nunca precisaria saber. Era isso mesmo o que faria.
Mas com as rosas desembrulhadas na mão ela esperava. Não as depunha no jarro, não chamava Maria. Ela sabia por quê. Porque devia dá-las. Oh ela sabia por quê.
E também porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter...
- Nunca se devia ficar com uma coisa bonita, assim, como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração.
Então? e então? indagou-se vagamente inquieta.
Então, não. O que devia fazer era embrulhá-las e man­dá-las, decep­cionada, mandá-las; e espantada ficar livre delas...
Mas qualquer pessoa pode se arrepender! revoltou-se de súbito... E mesmo o próprio mé­dico lhe dera a palmada nas costas e dissera: "não se esforce por fingir que a senhora está bem, porque a senhora está bem"... Assim, pois, ela não era obrigada a ter coerência, não tinha que provar nada a ninguém e ficaria com as rosas.
- Estão prontas? perguntou Maria.
- Estão, disse Laura surpreendida.
Olhou-as, tão mudas na sua mão. Impessoais na sua extrema beleza. Na sua extrema tranqüilidade perfeita de rosas. Aquela última instância: a flor. Aquele último aper­feiçoamento: a luminosa tranqüilidade...
Até que, devagar, austera, enrolou os talos e espinhos no papel de seda. Tão absorta estivera que só ao estender o ramo pronto notou que Maria não estava mais na sala — e ficou sozinha com seu heróico sacrifício.
Quando Maria voltou e pegou o ramo, por um míni­mo instante de avareza Laura encolheu a mão retendo as rosas um segundo mais consigo - elas são lindas e são minhas, é a primeira coisa linda e minha! e foi o homem que insistiu, não fui eu que procurei! foi o destino quem quis! oh só dessa vez! só essa vez e juro que nunca mais! (ela poderia pelo menos tirar para si uma rosa, nada mais que isso: uma rosa para si. E só ela saberia, e depois nunca mais se deixaria tentar pela perfeição, nunca mais!).
- E no segundo seguinte, sem nenhum obstáculo,as rosas estavam na mão da empre­gada, não eram mais suas, como uma carta que já se pôs no correio! Ficou com as mãos vazias mas seu coração obstinado e rancoroso ainda dizia: "você pode pegar Maria nas escadas, você bem sabe que pode, e tirar as rosas de sua mão e roubá-las". Roubar o que era seu? Pois era assim que uma pessoa que não tivesse nenhuma pena dos outros faria: roubaria o que era seu por direito! Oh, tem piedade, meu Deus. Você pode recuperar tudo, insistia com cólera. E então a porta da rua bateu.
- Então devagar ela se sentou calma no sofá. Sem apoiar as costas. Só para descansar. Não, não estava zangada, oh nem um pouco. Mas o ponto ofendido no fundo dos olhos estava maior e pensativo. Olhou o jarro. "Cadê minhas rosas", disse então muito sossegada.
- E as rosas faziam-lhe falta... Uma ausência que entrava nela como uma claridade. O centro da fadiga se abria em círculo que se alargava. Como se ela não tivesse passado nenhuma camisa de Armando. E na clareira as rosas faziam falta. "Cadê minhas rosas", queixou-se sem dor alisando as preguinhas da saia...
- Já que não estava mais cansada, ia então se levantar e se vestir. Estava na hora de começar.
Mas, com os lábios secos, procurou um instante imi­tar por dentro de si as rosas. Não era sequer difícil. Até bom que não estava cansada. Assim iria até mais fresca para o jantar. Quando estivesse pronta ouviria o barulho da chave de Armando na porta. Precisa­va se vestir. Mas ainda era cedo. Com a dificuldade de con­dução ele demorava. Ainda era de tarde. Uma tarde muito bonita. Aliás já não era mais de tarde. Era de noite. Da rua subiam os primeiros ruídos da escuridão e as primeiras luzes.
- Armando abriria a porta. Apertaria o botão de luz. E de súbito no enquadramento da porta se desnudaria aquele rosto expectante que ele procurava disfarçar mas não podia conter. Depois sua respiração suspensa se transformaria enfim num sorriso de grande desopressão. Aquele sorriso embaraçado de alívio que ele nunca suspeitara que ela per­cebia. Aquele alívio que provavelmente, com uma palmada nas costas, tinham aconselhado seu pobre marido a ocul­tar. Mas que, para o coração tão cheio de culpa da mulher, tinha sido cada dia a recompensa por ter enfim dado de novo àquele homem a alegria possível e a paz, sagradas pela mão de um padre austero que permitia aos seres apenas a alegria humilde e não a imitação de Cristo.
- A chave virou na fechadura, o vulto escuro e precipi­tado entrou, a luz inundou violenta a sala.
- E na porta mesmo ele estacou com aquele ar ofegante e de súbito paralisado como se tivesse corrido léguas para não chegar tarde demais.
- Ela ia sorrir. Para que ele enfim desmanchasse a ansiosa expectativa do rosto, que sempre vinha misturada com a infantil vitória de ter chegado a tem­po de encontrá-la chatinha, boa e diligente, e mulher sua. Ela ia sorrir para que de novo ele soubesse que nunca mais haveria o perigo dele chegar tarde demais. Ia sorrir para ensinar-lhe docemente a confiar nela.
Fora inútil recomen­darem-lhes que nunca falassem no assunto: ELES NÃO FALAVAM MAS TINHAM ENCONTRADO UMA LINGUAGEM DE ROSTO ONDE MEDO E CONFIANÇA SE COMUNICAVAM. Ela ia sorrir. Estava demorando um pouco porém, ia sorrir. Calma e suave, ela disse: - Voltou, Armando. Voltou.
- Como se nunca fosse entender, ele enviesou um rosto sorridente, desconfiado. Seu principal trabalho no momento era procurar reter o fôlego ofegante da corrida pelas esca­das, já que triunfantemente não chegara atrasado, já que ela estava ali a sorrir-lhe. Como se nunca fosse entender. Voltou o quê, perguntou afinal num tom inex­pressivo.
- Mas, enquanto procurava não entender jamais, o ros­to cada vez mais suspenso do homem já entendera, sem que um traço se tivesse alterado. Seu trabalho principal era ganhar tempo e se concentrar em reter a respiração. O que de repente já não era mais difícil. Pois inesperadamente ele percebia com horror que a sala e a mulher estavam cal­mas e sem pressa.
- Mais desconfiado ainda, como quem fosse terminar enfim por dar uma gargalhada ao constatar o absurdo, ele no entanto teimava em manter o rosto envie­sado, de onde a olhava em guarda, quase seu inimigo. E de onde começava a não poder se impedir de vê-la sentada com mãos cruzadas no colo, com a serenidade do vaga-lume que tem luz. No olhar castanho e inocente o embaraço vaidoso de não ter podido resistir. Voltou o quê, disse ele de repente com dureza. - Não pude impedir, disse ela, e a derradeira piedade pelo homem estava na sua voz, o último pedido de perdão que já vinha misturado à altivez de uma solidão já quase perfeita. Não pude impedir, repetiu entregando-lhe com alívio a piedade que ela com esforço conseguira guardar até que ele chegasse.
FOI POR CAUSA DAS ROSAS, disse ela com modéstia.
- Como se fosse para tirar o retrato daquele instante, ele manteve ainda o mesmo rosto isento, como se o fotógrafo lhe pedisse apenas um rosto e não a alma... No instante seguinte, desviou os olhos com vergonha pelo despudor de sua mulher que, desabrochada e serena, ali estava.
- Mas de súbito a tensão caiu. Seus ombros se abaixa­ram, os traços do rosto cederam e uma grande pesadez rela­xou-o. Ele a olhou envelhecido, curioso.
- Ela estava sentada com o seu vestidinho de casa. Ele sabia que ela fizera o possível para não se tornar luminosa e inalcançável. Com timidez e respeito, ele a olhava. Enve­lhecido, cansado, curioso. Mas não tinha uma palavra sequer a dizer. Da porta aberta via sua mulher que estava sentada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta e tranquila como num trem. Que já partira.

imagem:
Olhares

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